segunda-feira, 20 de julho de 2015

A questão grega em poucas palavras

Em poucas palavras, mas está tudo dito. Visto no 31 da Armada e nada a acrescentar:

«os bons, os maus e a maria
por Alexandre Borges, em 15.07.15
Toda a vida, só conheci três gregos: o deprimido que se limitava a responder ”Philip Morris. Isso é da Philip Morris” ao entusiasmo com que lhe dizia que comprar cigarros Karelia de duvidosa sexualidade era o meu contributo para a recuperação da economia grega, e duas gregas simpaticíssimas, uma das quais, pura e simplesmente, uma das mulheres mais belas que alguma vez conheci (A propósito, Maria, se estiveres a ler isto… Ah, deixa lá). O saldo é, portanto, francamente, positivo. Mas, nesta interminável discussão sobre a Grécia, reduziu-se tudo a um simplismo maniqueísta de fazer corar de embaraço.
Os Gregos são os bons; os Alemães, os maus. Os Gregos são bons porque são coitadinhos; os Alemães são maus porque só emprestam mais dinheiro aos Gregos se estes prometerem portar-se bem. Os Gregos são os bons porque nos deram a democracia; os Alemães são maus porque são nazis.
Bom, é capaz de valer a pena lembrar que os mauzões dos Alemães – e dos Holandeses, e dos Belgas, e dos Luxemburgueses, enfim, do resto da Europa – estão, pela terceira vez, a emprestar enormes quantidades de dinheiro à Grécia, a juros que a Grécia nunca encontraria, por si só, no mercado. E que esses mauzões e amigos já permitiram uma reestruturação da dívida grega. E que aceitaram os dois pedidos de adiamento de uma prestação pedidos pelos geniais Tsipras e Varoufakis.. E que, quando Tsipras e Varoufakis simplesmente não pagaram, os mauzões – estranho comportamento para vilões tão infames – rosnaram, mas continuaram disponíveis para novo empréstimo. E que, afinal, os implacáveis alemães, andam há cinco anos nisto.
Ah, dirão: os Alemães (vamos continuar a fingir que são só os Alemães) não andam nisto há cinco anos porque queiram salvar os Gregos; os Alemães andam nisto há cinco anos porque querem salvar os bancos alemães. Claro. Mas os bancos alemães têm uma peculiaridade – peculiaridade, aliás, partilhada por todos os bancos que conheço: não têm dinheiro; têm o dinheiro dos clientes. Quando cai um banco – sim, PCP, desculpe dar esta notícia assim, a frio – não é o banqueiro que se trama; é o povo que lá tenha as poupanças. Tome-se aqui o bom e velho BES como exemplo: é a família Espírito Santo que vêem a liderar as manifestações dos lesados do dito? Sim, amigos solidários. Estou certo de que se fosse o meu dinheiro na Caixa que estivesse em xeque na questão grega, era rapaz para andar um bocado mais agastado. Serei nazi?
Para a discussão, gostamos de trazer a Grécia que temos na cabeça. E a Grécia que temos na cabeça – vá lá explicar-se este fenómeno psiquiátrico – é uma Grécia que inventou a democracia e a filosofia há 2400 anos e que, por qualquer razão, os Alemães decidiram agora linchar. Mas – notícia de última hora – a Grécia de há 2400 anos, por mais gratidão que nos mereça, nada tem a ver com isto. A Grécia que se deixou cair nesta trágica situação não é a cidade-estado de Atenas com que, romanticamente, a insistimos em confundir. É o país que só existe como hoje o conhecemos desde o século XIX e que sempre teve dificuldades financeiras. E é, sobretudo, a Grécia que, nos últimos 20 anos, maquilhou os números para ocultar a sua dívida real, que atingiu défices anuais de 15%, que continuou a engordar o número de funcionários públicos até mais de 800 mil (incluindo casos célebres como o dos 45 jardineiros para tratar de quatro canteiros num hospital). É a Grécia onde, apesar de haver uma economia ainda mais pobre do que, por exemplo, a portuguesa, se praticava (e pratica) um ordenado mínimo superior ao ordenado médio português, se trabalha menos anos e, frequentemente, se fecha a porta quinta-feira ao fim da tarde e se volta segunda. É a Grécia que, na sua extensa lista de profissões de desgaste rápido a quem era permitida a reforma aos 40 e tal anos, se encontrava, por exemplo, o perigoso métier de cabeleireiro. É a Grécia que, apesar de todas as vilanias pedidas pelos mauzões do centro da Europa, ainda não aceitou mexer nos seus off-shores, em fazer os armadores pagarem impostos, em retirar os privilégios à igreja ortodoxa ou reduzir aquele que é, percentualmente, um dos maiores orçamentos militares da Europa.
E, no entanto, choca-nos que possa haver quem não esteja disposto a continuar a dar a esta Grécia, de mão beijada, milhares de milhões de euros. Choca-nos a vilania desse sinistro FMI que insiste em fazer exigências, quando, afinal, não é mais do que uma organização de países, a maioria dos quais – continuam as notícias bombásticas – com condições de vida bem piores do que a Grécia. Repugna-nos que governos democraticamente eleitos pelos seus povos tenham de prestar contas a esses mesmos povos pelo que decidem fazer com o dinheiro deles, porque, aparentemente, o argumento da democracia só é válido quando se fala da – digam em coro – Grécia.
Os gregos comuns não terão culpa da Grécia. Mas não podem, certamente, culpar os maus dos alemães pela enorme e persistente ingenuidade, senão negligência, com que escolheram os seus responsáveis políticos e os deixaram agir, ao longo de décadas, enquanto seguiam, lenta e inapelavelmente, para o abismo.
Recentemente, cansados das velhas soluções, os Gregos entregaram o governo a um pequeno partido que, pouco antes, não recolhia mais de 300 mil votos, e que dizia que faria tudo diferente do que os outros faziam. Por cá, mas não só, a esquerda facilmente impressionável (levem-me ou não a mal, amigos de esquerda, a diferença entre esquerda e direita é, frequentemente, apenas uma questão de ingenuidade versus realismo) tratou da canonização instantânea. Não era só Tsipras, cuja rebeldia consistia, ao que percebi, em dispensar a gravata; era, sobretudo, Varoufakis, o homem que as mulheres queriam ter e que os homens queriam ser; o governante que se deixava fotografar a caminho de reuniões de mota e blusão de cabedal; o génio rico, filho de ricos, casado com uma mulher rica, filha de ricos, que, ao que se diz, terá inspirado Jarvis Cocker a escrever essa bela canção sobre uma grega em Londres, estudante de escultura, que queria brincar às “pessoas comuns”.
Pouca importava se lembrássemos que Varoufakis já trabalhara no governo do PASOK e que, portanto, era difícil compreender que o seu tão propalado génio não tivesse funcionado então. O fascínio deu para meses. Deu para fazer uma super-star política como não se via, talvez, desde a primeira corrida presidencial de Obama.
Eis o resumo da genialidade: eleito para bater o pé à austeridade da Europa, o Syriza passou cinco meses a pedir adiamentos. O tempo foi passando, entre as lições de moral de Varoufakis aos ministros das finanças a quem tinha de pedir dinheiro e os “programas económicos” rabiscados pelo negociador em folhas do bloco de notas do hotel. No fim, o Syriza não só não pagou, como passou a batata quente para as mãos do povo. Que coragem, disse-se por aí. Um governo eleito pelo povo para o representar e decidir, na hora da decisão, lavou as mãos e disse ao povo que fizesse o que entendesse.
Tsipras e Varoufakis nunca tiveram a menor ideia de como tirar a Grécia da situação em que está. Talvez tenham achado que encher o peito e aparecer ao lado de Putin bastaria para meter medo a um velho continente tão cheio de medos, traumas e ligações perigosas. Mas a chantagem emocional não funcionou. Então, sonharam ardentemente com um “sim” no referendo. Sim, com um “sim” – “nai”. Durante uma semana, apavoraram o próprio país impondo um limite diário de 60 euros por cabeça aos levantamentos de dinheiro. Com um requinte: só mil dependências bancárias poderiam estar abertas em todo o país. Porquê? Se cada cidadão só podia levantar 60 euros, que diferença fazia estarem todos os bancos abertos? Uma diferença enorme: as filas dramáticas de gregos, de todas as idades, espremendo-se contra a porta de um dos poucos bancos abertos num raio de quilómetros. As imagens correram mundo e, naturalmente, chocaram. Os maus dos Alemães. Os maus dos Europeus. E, entretanto, as sondagens iam dando o “sim” a subir porque os Gregos começavam a ter um terrível vislumbre do que seria um futuro sem dinheiro. Se votassem “sim”, Tsipras e Varoufakis lavariam daí mais uma vez as mãos. Era o povo que tinha escolhido a austeridade, forçado pela vilania alemã. Apresentariam a demissão, saindo como tinham entrado: como heróis, sem que tivessem tido de provar o que quer que seja a quem quer que fosse.
E, no entanto, os Gregos disseram “não”. Oxi. Não à austeridade. Não à Europa. Morremos, mas morremos de pé. Vamos lá! E que fizeram Tsipras e Varoufakis? Varoufakis, que prometera demitir-se se ganhasse o “sim”, demitiu-se ganhando o “não”. Diz que foi para facilitar as negociações porque tinha ouvido dizer que lá na Europa não gostavam dele – mas, na verdade, já tinha sido substituído há muitas semanas por um “negociador” que, agora, o substitui como ministro de facto. E Tsipras? Foi negociar mais austeridade, para depois voltar a casa e gritar que foi “chantageado”.
Nunca souberam o que fazer. Nunca houve alternativa. E é melhor que deixemos rapidamente de tratar a questão como um debate moral. Alguém pode não pagar o que deve? Pode. Mas não espere que lhe voltem a emprestar dinheiro. Isto não é moral; é lógica simples. E, a propósito: haverá, com certeza, muitos especuladores a enriquecer com a compra de dívidas soberanas, mas sabem quem é que também investe muito em dívidas soberanas? Outros estados soberanos, com os fundos com que tentam financiar os seus sistemas de Segurança Social.
Quanto à solidariedade, choca-nos que o Presidente da República Portuguesa dissesse que, saindo a Grécia, ficavam 18 países, em resposta a uma jornalista que lhe perguntava se a Zona Euro acabaria com uma saída da Grécia. Choca-nos que o primeiro-ministro português se demarcasse da Grécia. Mas não nos choca que a Grécia não tivesse tido o menor pudor em dizer, consecutivamente, que, saindo eles, Portugal seria o próximo. Não nos choca que o governo grego arrastasse com ele os juros da dívida portuguesa em nome de nova chantagem emocional. Mas choca-nos que o governo português faça o que tem de fazer: preocupar-se, em primeiro lugar, com a débil situação portuguesa. Choca-nos o alemão feio de cadeira de rodas, que é ministro das finanças e tem cara de mau, mas admiramos o ministro das finanças gregos, que é garboso e bem falante. E não nos chocam os seus colegas de governo que chamam nazis por tudo e nada aos alemães, que ameaçam invadir a Alemanha com jihadistas (?), enquanto vão fazendo os seus negócios com Putin.
Podemos estar todos à beira de uma história muito complicada, e as histórias muito complicadas nunca foram contadas dizendo que, de um lado, estavam os bons e, do outro, os maus.
E, já agora, a quem possa ser mais sensível ao argumento arqueológico, vale a pena pensar que o nosso sistema político – aliás, toda a contemporaneidade – deve muito mais à Revolução Francesa, arquitectada sobre os princípios definidos por alemães como Kant, do que à longínqua democracia de Atenas, onde mulheres, escravos e estrangeiros não podiam tomar parte. E que não é lá muito humanista insistir em reduzir a Hitler uma cultura que nos deu Beethoven, Bach, Goethe, Schumann, Nietzsche, Hegel, Leibniz, Husserl, Shopenhauer, Schiller, Thomas Mann, Brecht, Murnau, Lang, Einstein e até, vejam lá, Karl Marx.
(Mas concedo que também foi de lá que vieram os Scorpions. E, afinal, a Maria era muito mais bonita do que qualquer alemã que tenha conhecido em dias de minha vida).

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